Bom dia, boa tarde, boa noite! Não sei quando você está lendo esse texto, meu querido ou querida leitora, mas por aqui escrevo esse texto no final de semana de Páscoa cristã. Um feriado que tem significados diferentes para as pessoas. Para alguns é uma reflexão espiritual. Para outros, apenas uma oportunidade de se reunir com a família. Muitos não comemoram, mas uma coisa é certa, em todos os casos provavelmente haverá um chocolatinho para ser degustado, em suas casas, nas semanas seguintes ao Domingo de Páscoa.
Falando em chocolate, esse ano a Páscoa está, com o perdão do trocadilho, mais “salgada”. Não bastasse o preço do azeite e do bacalhau, após uma grande quebra de safra nos principais países produtores de cacau, o preço da commodity disparou. Somente de janeiro a março desse ano o preço da matéria prima do chocolate subiu mais de 140%. Para se ter uma ideia, essa valorização foi quase o dobro do famigerado Bitcoin, no mesmo período.
Para quem tem criança em casa, a compra dos já superfaturados ovos de Páscoa não deve ter sido fácil. Para a sorte do meu bolso, não tenho criança em casa e não sou lá grande fã da iguaria. Como um ou dois pedaços de chocolate por ano, mas tenho ciência que essa gostosura é doce favorito de muitas pessoas e agora no período de Páscoa, ele se torna um dos pontos focais das refeições e momentos de lazer. Entretanto, no universo dos vinhos, o preço do chocolate não é o maior inimigo do enófilo.
Esse ingrediente é um dos mais difíceis de serem harmonizados na hora da degustação de um bom vinho. Quanto mais doce pior. Chocolate ao leite, chocolate branco, que tecnicamente nem chocolate é, ou chocolate com frutas, acabam “matando” os vinhos, pois sua doçura e untuosidade são tão intensos que sobrepujam todos os aromas e sabores do vinho.
A alternativa seria os espumantes e frisantes doces, vinhos de sobremesa como moscatos envelhecidos ou vinhos dos fortificados como os vinhos do porto, porém como aqui no Brasil nossa preferência são os vinhos tintos, as opções são bem reduzidas.
Pilha de chocolates. Fonte: André Karwath aka Aka, CC BY-SA 2.5, via Wikimedia Commons
No post dessa semana, vamos conhecer a história dos vinhos italianos da região de Verona. Produzidos com um método bem singular e que, quando prontos, se tornam um dos poucos vinhos tintos do mundo que conseguem igualar a intensidade dos sabores e aromas do chocolate, se tornando uma combinação maravilhosa para o ouro negro dos Maias.
A CASA DA JULIETA.
A cidade de Verona é a capital da província homônima em uma região localizada no nordeste da Itália: o Vêneto. Não é a maior, nem a mais famosa. Essas alcunhas são, merecidamente, legadas à espetacular Veneza. Porém, apesar de não receber a quantidade gigantesca de turistas que sua vizinha recebe, Verona é igualmente charmosa e, também, conta com um legado histórico muito grande, tendo passado pelo julgo de diversos impérios ao longo dos séculos.
Veneza a capital do Vêneto. Fonte: Martin Falbisoner, CC BY-SA 4.0, via Wikimedia Commons
Dos Celtas à Napoleão, passou pelas mãos dos Romanos, dos Ostrogodos, dos Lombardos, dos Francos, do Sacro Império Romano Germânico, Da República de Veneza, do Império Austríaco, até ter sido finalmente incorporada ao Reino de Itália, em 1866. Sua riquíssima história é condensada no centro histórico de Verona, o qual foi declarada Patrimônio da Humanidade pela UNESCO por suas peculiaridades urbanas e por seu patrimônio artístico e cultural.
Seu monumento mais emblemático é a Arena di Verona, um anfiteatro romano, um pouco menor, porém muito mais bem conservado e, para muitas pessoas, mais belo e melhor de ser visitado que o Coliseu de Roma. Além da arena, A Catedral de Verona, a Basílica de São Zeno, as Tumbas de Scaligeri, A Ponte Pietra e o Palazzo del Capitanio são apenas alguns das centenas de pontos turísticos, de tirarem o fôlego, que podem ser admirados na cidade.
Ópera sendo performada na Arena di Verona. Fonte: Fondazione Arena di Verona. Disponível em: https://www.arena.it/
Todavia, a despeito de tanto locais históricos, uma construção baseada na ficção é o local mais procurado da cidade. Duas peças de William Shakespeare se passam na cidade de Verona. Uma, é a comédia: “Os Dois Cavalheiros de Verona” e a outra, talvez sua tragédia mais famosa, é a consagrada: “Romeu e Julieta. Em um prédio medieval onde supostamente viveu uma família de sobrenome Del Cappello foi criado um museu chamado de: “Casa da Julieta”.
Casa da Julieta. Fonte: Comune di Verona. Disponível em: https://casadigiulietta.comune.verona.it/
Nesse espaço, que se tornou o principal ponto turístico da cidade e onde, supostamente, a personagem Julieta Capuleto teria vivenciado seu amor por Romeu, turistas podem sentir um pouco do clima da época em que se passa a história e casais apaixonados podem celebrar festas de casamentos com uma das cidades mais envolventes da Itália.
PROSECCO E RAY-BAN
O Vêneto como um todo é um polo agrícola e industrial. Produz boa parte dos legumes e verduras consumidos na Itália e grandes empresas como Murano (cristais), Luxxotica (dona da marca Ray-Ban), Bottega Veneta (moda) e Aprilia (motos), por exemplo, têm fábricas na região. Algumas delícias da gastronomia também têm origem nos arredores de Verona e Pádua. Posso citar, só para lhe dar fome, os queijos Asiago e Grana Padano e Provolone, o arroz Vialone, o salame Sopressa, o Tiramissu e os drinks Bellini e o Aperol Spritz.
Aperol Spritz. Fonte: Sarah Stierch Missvain, CC BY 4.0, via Wikimedia Commons
Falando em Aperol Spritz, um dos meus drinks favoritos, constituído a partir, de uma forma simplista, da mistura de Aperol, espumante, laranja e água com gás, é no setor vitivinícola que Verona se destaca. Vinhos mundialmente famosos são produzidos na região. O espumante Prosecco, que caiu muito bem no gosto dos brasileiros, o delicioso branco Soave, e o leve tinto Bardolino são alguns exemplos dos maravilhosos vinhos da região.
Em termos de fama, no entanto, quem rivaliza com o Prosecco são os tintos de uma sub-região do Vêneto, que compreende sete comunas ao redor de Verona, chamada de Valpolicella.
Uva Corvina Veronese. Fonte: Ursula Brühl, Julius Kühn-Institut (JKI) Bundesforschungsinstitut für Kulturpflanzen Institut für Rebenzüchtung Geilweilerhof - 76833 Siebeldingen - GERMANY, CC BY-SA 4.0, via Wikimedia Commons
Neste território, as rainhas são três uvas, das quais seus nomes, pouco se ouve falar. Com essas três variedades, Corvina Veronese, Rondinella e Molinara e as vezes com um pouquinho de algumas outras, os italianos produzem uma gama incrível de vinhos, que variam desde espumantes e frisantes tintos, até densos e licorosos vinhos de sobremesa conhecidos como Recioto della Valpolicella.
Esse vinho doce, inclusive, até é um bom par para chocolates, porém com um alto teor de açúcar residual, quando esse vinho é harmonizado, com o tema dessa conversa, a experiência se tornará extremamente enjoativa e pode te levar à beira de uma hiperglicemia de tanto doce.
Garrafa do vinho Recioto Della Valpolicella. Fonte: Cantine Campagnola. Disponível em: https://campagnola.com/
Mesmo não sendo a minha primeira escolha para acompanhar um quadradinho de chocolate, o Recioto exerce um papel fundamental para todos os outros vinhos da região. A grande peculiaridade desse vinho se dá quanto ao seu processo de produção, que remonta a ocupação grega da península itálica e que os romanos adotaram para produzir seus vinhos nos arredores de Verona.
UVAS PASSAS AO ESTILO GREGO
O nordeste da Itália, onde fica Valpolicella, já está quase no sopé dos Alpes. É uma região fria, com o lago Garda a oeste e o mar Adriático a leste. Uvas produzidas em locais de clima ameno não conseguem produzir uma alto nível de açúcar. Sempre bom ter em mente que, em qualquer vinho, o açúcar das uvas é fundamental para se produzir um vinho de qualidade, uma vez que as leveduras o transformam em álcool e gás carbônico, o qual, nos vinhos de mesa é dispensado.
Vinhedo em Valpolicella. Fonte: Gerardo Cesari S.p.A. Disponível em: https://www.cesari.it
Tradicionalmente os produtores de vinho na região escolhiam a mão, somente as uvas do topo dos cachos que recebiam a maior intensidade de luz solar ao longo do ano e que conseguiam ter um teor de açúcar elevado para produzir o Recioto della Valpolicella. No caso específico desse vinho, bem em muitos outros vinhos doces mundo a fora, os viticultores, para o processo de fermentação antes que as leveduras consumam todo o açúcar das uvas.
O problema desse processo de produção é que além de não render muito em termos de quantidade, é um jeito muito caro de se produzir um vinho. Dessa forma as uvas que não conseguiam atingir esse grande grau de maturação eram destinadas para produzir os vinhos do dia a dia. Os vinhos mais simples de Valpolicella são tintos bem leves com um teor alcóolico baixo e concebidos em um estilo bem jovem e frutado, sendo muitas vezes comparados ao vinhos Beaujolais da França.
Uvas parcialmente desidratadas. Fonte: Gerardo Cesari S.p.A. Disponível em: https://www.cesari.it
No método “Appassimento” ou “Apasiamento”, conhecido localmente como o método Grego, as uvas são colhidas e deixadas em caixas abertas ou grandes esteiras de madeira, as vezes em céu aberto, por vezes em celeiros, de forma espaçada, para que o ar circule bem entre elas, fazendo que através do tempo a água dentro das uvas evapore e dessa forma os açucares se concentrem. Além da maior concentração de açúcar, as uvas adquirem características aromáticas únicas que depois são transmitidas aos vinhos. Toques de café, chocolate amargo, passas, figo seco e sabores terrosos, são normalmente encontrados nos vinhos produzidos com as uvas desidratadas.
Processo appassimento das uvas na vinícola Allegrini. Fonte: Allegrini. Disponível em: https://allegrini.it/
Dessa maneira, os produtores encontram uma forma mais barata e com maior rendimento de seu preciso néctar adocicado. Só que ao longo dos anos o gosto dos consumidores de vinhos mudou. Vinhos doces deixaram de ser os mais desejados e foram preteridos pelos vinhos secos...Ao menos, fora do Brasil...
O GRANDE DOGE DOS VINHOS
A incrível engenhosidade humana, normalmente, é precedida de uma boa dose de sorte. Conforme mencionei anteriormente, para se produzir um vinho doce de qualidade os produtores interrompem o processo de forma intencional o processo de fermentação.
Acontece que os enólogos de Verona sabiam, por “sorte” quando o mercado virou para os vinhos secos, que se eles deixassem as leveduras consumirem todo o açúcar das uvas desidratadas no Apasiamento, o resultado seria um vinho seco, muito alcoólico.
Tapeçaria antiga retratando a fermentação das uvas. Fonte: https://www.vinumhadrianum.com/
Isso foi descoberto, provavelmente por acaso. Algum produtor descuidado do passado, pode ter esquecido um tacho de uvas doces fermentando, esqueceu de interromper o processo e assim, meio que por acaso do destino, surgiu o vinho que se tornaria o ícone da região: O Amarone della Valpolicella. Um produto que, mudou a percepção sobre os vinhos da região, que antes eram considerados tintos secos muitos simples, elevando o nome “Valpolicella” ao panteão de vinhos notáveis dentre os grandes do mundo.
O Amarone é um vinho tinto seco, muito encorpado, muito alcoólico, mas que preservou as características aromáticas do seu primo doce “Recioto”, com notas adocicadas que combinam muito bem com um saboroso chocolate. O vinho ainda tem mais uma virtude. As uvas que o dão origem, por virem de uma região mais fria, naturalmente o entregam uma boa acidez, no sentido de fresco, o que torna a harmonização com chocolate menos enjoativa, convidando sempre quem está degustando a tomar mais uma taça desse delicioso vinho.
Amarone della Valpolicella da vinícola Allegrini. Fonte: Allegrini. Disponível em: https://allegrini.it/
As uvas desidratadas, no método grego, ainda entregaram aos amantes do vinho mais uma interessante possibilidade. Como elas retem muito açúcar, mesmo após produzirem o Amarone della Valpolicella, que acaba se tornando, ainda, um vinho caro, os viticultores veronenses perceberam que podiam misturar as cascas que sobravam do apasiamento, com os vinhos simples de Valpolicella, gerando uma nova fermentação e concentrando de forma exponencial os aromas e sabores daqueles vinhos outrora ordinários. Quase que “ressuscitando” um vinho que seria praticamente perdido.
Vinho Amarone com diversos chocolates. Fonte: https://tommasiwinehospitality.com/
A esse método, deram o nome de Ripasso (repassado em uma tradução livre). Os vinhos Valpolicella Ripasso são uma alternativa mais em conta aos Amarones mas que preservam também boa parte das características que tornam ambos ótimas companhias para aquele chocolatinho no final do dia.
Desejo muita paz e uma boa Páscoa para você e toda sua família.
Abaixo deixo alguns links na Amazon para maravilhosos vinhos do Vêneto:
Saúde.
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