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O MOSAICO DOS SOLOS


Normalmente, gosto de trazer nesse espaço histórias mais curiosas e menos técnicas sobre o mundo dos vinhos. Afinal, acredito que nenhum dos três leitores dessa newsletter tenha a pretensão de se tornar um Sommelier ou trabalhar nesse segmento. Quem não exerce atividade no ramo e, até eu mesmo de vez em quando, apenas quer abrir uma garrafa e degustá-la, sem ficar pensando em tecnicidades sobre o vinho que se está bebendo. Simplesmente, se é bom ou ruim, já basta.


Sendo assim, a ideia por aqui sempre foi tornar algo que é muito prazeroso (tomar vinho) em uma prática ainda mais interessante e, se possível for, que nesse caminho eu posso agregar algo para você que além de meu cliente é um amigo. Para mim, entretanto, o processo de redigir esses textos e montar os e-mails com toda uma estética particular é uma via de duas mãos. Além de eu entregar algo, aprendo muito na jornada, conforme vou estudando e revisando as informações que utilizo nas composições.



Mesmo trabalhando com vinhos há mais de 18 anos, todo o conhecimento adquirido nesse tempo, parece nunca bastar. Quanto mais eu me aprofundo nesse tema, mais parece que eu não sei nada. Como se tanta informação, por si só não bastasse, o universo dos vinhos parece estar em constante mutação. Por conta de mudanças climáticas, regiões que antes não produziam nada agora conseguem fazer bons vinhos. Uvas que não eram permitidas em algumas denominações de origem, agora são necessárias para a continuidade da produção. 


Por razões econômicas e políticas, nomes de regiões são alterados e seus limites expandidos. Isso só para citar alguns exemplos. Apesar de toda a vastidão do tópico e sua constante metamorfose, uma variante é sempre constante, ao menos nos últimos séculos: Os vinhos produzidos na região de Bordeaux na França, são os mais desejados por consumidores, principalmente os mais endinheirados, de todo o mundo. 


Recentemente, recebemos aqui na Casavino uma nova gama de vinhos de Bordeauxs, oriundos de diversas sub-regiões e eu senti a necessidade de me aprofundar em quais as diferenças principais entre elas e resultado do meu estudo, apesar de mais longo e técnico do que o habitual, eu compartilho com vocês na newsletter dessa semana.


IT’S THE SOIL, ST**ID!


Bordeaux é reverenciada como o coração da indústria vinícola mundial. Com uma história que remonta a séculos e uma grande reputação pela produção de vinhos de classe internacional. Dos majestosos Châteaus e dos Grand Crus às aconchegantes vinícolas familiares, cada garrafa é uma fonte de prazer para os grandes apreciadores de vinho.  Localizada no sudoeste da França, Bordeaux é uma região que representa o pináculo da excelência vinícola.  


Museu Cité du Vin em Bordeaux. Fonte: Oli Lynch - Domínio Público


Entretanto, como já falei bastante em um artigo anterior (UMA INUNDAÇÃO DE VINHOS), sobre sua história e relevância econômica vamos hoje focar no fator primordial que a concede uma capacidade única de gerar vinhos incríveis, desde os elegantes e robustos tintos, brancos frescos e minerais, até os singulares vinhos licorosos extremamente demandados e que atingem valores estratosféricos. 


As espécies de uvas plantadas em Bordeaux, são difundidas por todo o mundo. Cabernet Sauvignon e Merlot, juntamente com as menos conhecidas, Carménère, Cabernet Franc e Petit Verdot dão origem a vinhos da China até aqui no Brasil. Como as vinhas, o clima da região não é assim tão único, sendo similar em diversas regiões vinícolas que compartilham da mesma latitude.


Uvas Cabernet Sauvignon do Château Cos D'Estournel, St-Estephe AOC in Medoc, Bordeaux France - Fonte: Megan Mallen, CC BY 2.0 , via Wikimedia Commons


Mas, se não é o clima, tampouco as uvas, se excluirmos o know-how adquirido em séculos produzindo vinhos, o que diferencia tanto os vinhos de Bordeauxs em relação aos outros tantos vinhos produzidos mundo a fora? Bom, os títulos do artigo e do capítulo já nos dão uma pista. A magia do vinho reside nas profundezas do solo, onde as raízes das vinhas mergulham em busca de nutrição e caráter.

Cada tipo de solo conta uma história única de séculos de sedimentação e erosão, moldando lentamente a paisagem e os vinhos que dela brotam. O solo de Bordeaux é como um mosaico ou uma concha de retalhos geológica. A região é abençoada com uma riqueza de solos diversos, cada um contribuindo com sua própria assinatura para os vinhos produzidos na região.


OS DOIS LADOS DO RIO


O estuário do Rio Gironde, que é formado pelo encontro dos rios Garonne e Dordogne, corta a Região de Bordeaux, mais ou menos ao meio. Acostumou-se a chamar os lados de Margem esquerda e Margem direita, com uma “ilha” no meio chamada de Entre-Deux-Mers ou “Entre os Dois Mares” em uma tradução livre. O interessante é aqui é saber que, mesmo não sendo uma ciência exata, conhecendo um pouquinho sobre em qual parte de Bordeaux o vinho é feito, nós conseguimos ter uma boa noção de como serão as suas características antes de degustá-lo.

Pont de Pierre cortando o rio Garonne em Bordeaux. Fonte: Olivier Aumage, CC BY-SA 2.0 FR, via Wikimedia Commons


Na margem esquerda, onde o cascalho domina o solo, a Cabernet Sauvignon e a Cabernet Franc são as estrelas. Nesse ambiente há uma melhor drenagem e o clima é um pouco mais quente produzindo vinhos potentes e complexos. Uma curiosidade é que, na verdade, o que contribui para o ambiente mais quente é a questão de o solo pedregoso absorver o calor durante o dia e irradiar este às uvas durante a noite, favorecendo assim o amadurecimento, principalmente, da Cabernet Sauvignon.


Já no lado direito ou margem direita do rio Gironde, há mais argila no solo, sendo que ali, quem reina é a Merlot. Os solos argilosos retêm mais a humidade fazendo com que, em geral, a temperatura do solo fique mais amena. Essa variedade de uva amadurece melhor nessas condições não tão quentes dando origem à vinhos com taninos mais suaves e aromas mais frutados e elegantes que seus pares do lado esquerdo que, normalmente, têm um caráter mais intenso, amadeirado e animal.

Vista espacial do Estuário do Rio Gironde. Fonte: Copérnicus


Esta diversidade de solos é a espinha dorsal da riqueza e complexidade dos vinhos de Bordeaux. Além dos aspectos macros, com relação ao solo, ainda existem micro variações que fazem algumas sub-regiões se destacarem ainda mais em um universo de vinhos magníficos. Alguns vinhos são classificados como, por exemplo, Grand Crus, enquanto outros são considerados genéricos e isso novamente está muito ligado com esses pequenos detalhes intrínsecos a cada pedacinho da colcha de retalhos dos tipos de solo da região.


SUB-REGIÕES – MARGEM ESQUERDA


Munidos do conhecimento acerca das principais diferenças dos solos na região onde os vinhos de Bordeaux são produzidos, já possível ter uma boa ideia de qual vinho se adequará ao seu paladar, entretanto Bordeaux é dividida em dezenas de apelações de origem ou em uma linguagem mais informal, em sub-regiões. Atualmente, são 65 AOCs (appellation d'origine contrôlée), para ser mais exato. Com essa enorme quantidade, é muito difícil para nós meros mortais, conhecermos as características de cada uma delas, porém algumas das mais importantes, apresentam similaridades.

Dentro das sub-regiões de Bordeaux, o Médoc, na margem esquerda além de ser uma das maiores em área é onde se encontram o maior número de vinícolas ou châteaus de renome mundial. No Médoc encontramos denominações de grande prestígio como Pauillac, Saint-Julien, Saint-Estèphe e Margaux que são conhecidas por seus vinhos tintos de classe mundial. 


Pauillac, lar de três dos cinco Premier Cru Classé na classificação de 1855 (assunto para uma próxima newsletter), produz vinhos poderosos e elegantes, com taninos firmes e notas de cassis e grafite e cedro. Aqui a Cabernet Sauvignon é a rainha e para muitos especialistas essa é a sub-região de bordeaux mais prolixa na produção de grandes vinhos. Alguns nomes famosos de Pauillac incluem: Château Latour, Château Lafite Rothschild, Château Mouton Rothschild, Château Pichon-Longueville, Château Pichon-Longueville-Lalande, Château Duhart-Milon, Château Pontet-Canet, Château Grand-Puy-Lacoste, Château Grand-Puy-Ducasse, Château Lynch-Bages e Château Clerc-Milon.

Cascalho e pedregulhos do solo do Château Latour em Pauillac. Fonte: https://www.chateau-latour.com


Saint-Julien é famosa por sua elegância e equilíbrio. Seu solo, apesar da camada superficial muito pedregosa, é bem complexo dando origem a vinhos muito aromáticos e bem distintos entre si. Da mesma maneira, blends bem complexos que misturam as uvas Cabernet Sauvignon, com Cabernet Franc, Merlot, Malbec, Petit Verdot e Carménère são utilizados na composição dos vinhos: Seus vinhos mais famosos são: Château Ducru-Beaucaillou, Château Gruaud-Larose, Château Léoville-Barton, Château Léoville-Las Cases, Château Léoville-Poyferré, Château Beychevelle e Château Gloria.


Em Saint-Estèphe, como em todo o Médoc o cascalho predomina no solo, entretanto nessa sub-região a terra contém um pouquinho mais de argila, produzindo vinhos ligeiramente mais frutados. Alguns destaques da AOC são: Château Cos d'Estournel, Château Montrose, Château Calon-Ségur, Château Phélan Ségur, Château Les Ormes de Pez e Château Haut-Marbuzet.

Château Montrose em Saint-Estèphe. Fonte: https://www.chateau-montrose.com/


Margaux é uma sub-região do Médoc, que conta com um dos cinco premieres crus originais, o homônimo Château Margaux, bem como outros vinhos e muita qualidade. A principal característica de seus vinhos é serem muito perfumados com notas predominantes de groselha negra. Nomes de vinhos famosos da região incluem: Château Margaux, Second Château Rauzan-Ségla, Château Rauzan-Gassies, Château d'Issan, Château Giscours, Château Cantenac-Brown, Château Palmer e Château Prieuré-Lichine.

Château Margaux. Fonte: BillBl, CC BY 2.0, via Wikimedia Commons


Por fim, ainda na margem esquerda, mas já na sub-região de Graves, encontramos a AOC Pessac-Léognan. Nessa apelação, bem como toda a sub-região o solo é muito pedregoso, favorecendo naturalmente a drenagem na terra. Foi ali que a fama dos vinhos de bordeaux começou a se espelhar por todo mundo e é lar de um dos premiers crus originais. Por lá se produzem maravilhosos vinhos tintos, porém a região se destaca muito com os brancos. Os destaques da região são: Château Haut-Brion, Château Pape Clément, Château Latour-Martillac, Château Smith Haut Lafitte, Château La Mission Haut-Brion, Château La Tour Haut-Brion, Château Carbonnieux e Château Haut-Bailly.


SUB-REGIÕES – MARGEM DIREITA


Já nas sub-regiões no lado direito do estuário do rio Gironde, entre os mais proeminentes estão os solos argilosos, como os encontrados em Pomerol e Saint-Émilion. Um dos vinhos mais caros e desejados do mundo, o Château Petrus, nasce em Pomerol em um solo mítico, conhecido como argila azul, pela sua alta concentração de ferro no solo. Essa combinação única de solo, juntamente com o microclima particular da região, resulta em vinhos, produzidos pincipalmente com a uva Merlot, que são conhecidos por sua elegância, suavidade e capacidade de envelhecimento. 


Alguns dos principais nomes de Pomerol: Château Pétrus, Château L'Évangile, Château La Fleur-Pétrus, Château Lafleur, Château Latour à Pomerol, Château Trotanoy, Vieux Château Certan, Château Le Pin, Château Certan de May, Château Clinet e Château Clos l'Église.

Solo argiloso no vinhedo do Château Petrus. Fonte Hullie - Domínio Público. 


O solo de Saint-Émilion, por sua vez se distingue devido à sua composição argila-calcária excepcionalmente rica. Esta combinação singular de argila e calcário proporciona condições ideais para o cultivo das uvas Merlot, que são predominantes na região. A argila retém a umidade necessária, permitindo que as videiras sobrevivam em anos mais secos, enquanto o calcário fornece uma base mineral que contribui para a complexidade e a estrutura dos vinhos. 


Alguns dos principais nomes de Saint-Émilion são: Château Pavie, Château Figeac, Château Beau-Séjour Bécot, Château, Château Canon-la-Gaffelière, Château Pavie-Macquin, Château Troplong Mondot, Château Valandraud, Château Angélus, Château Ausone, Château Cheval Blanc.

Vinhedo do Château Pavie em Saint-Émilion. Fonte: https://www.vignoblesperse.com/


Em suma Bordeaux é mais do que apenas uma região vinícola; é um testemunho da complexidade e beleza da natureza. Nos solos diversificados de Bordeaux, encontramos o verdadeiro tesouro que dá vida aos vinhos que apaixonam os paladares em todo o mundo. Ao mergulhar nas profundezas do terroir bordalês, descobrimos uma riqueza de sabores, aromas e histórias que nos lembram do poder transcendental do vinho em nos conectar com a terra e uns com os outros. 


Então, levante sua taça, brinde à diversidade dos solos de Bordeaux e permita-se ser transportado em uma jornada sensorial que só o vinho pode oferecer. 

    Abaixo deixo alguns links na Amazon para grandes vinhos de Bordeuax:

Vinho François Louis Vuitton Cuvee Privee Chateau Dauzac 2015

Vinho Tinto Frances Grand Cru - Chateau Peyrelongue

Vinho Château Marjosse Rouge Bordeaux AOC 2020

Chateau Chapelle de Potensac 2017

Vinho Chateau Belle Croix Bordeaux Superiuer

Santé!

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