Após alguns dias de descanso no litoral estou volta para a cidade para pegar firme na labuta, munido de boas lembranças e mais alguns momentos vividos com minha família. Aliás, apesar de ser meio clichê, ao menos na minha opinião, viajar é o melhor investimento que podemos fazer, uma vez que as recordações são umas das poucas coisas que ninguém pode tomar de nós.
Nesse sentido, uma das minha melhores recordações de viagens foi uma visita a um restaurante de comida basca, enquanto visitava a linda Madri em um quente dia do verão Espanhol. Não sei por que cargas d'água, mas o País Basco sempre despertou curiosidade e admiração em mim. Não tenho, ao menos que eu saiba, descendência basca, tampouco nunca conheci ninguém de lá. Talvez alguma aventura em uma vida passada ou algo espiritual, porém toda vez que ouço ou vejo algo sobre aquela região eu paro para prestar atenção.
Pincho de salmão. Fonte: https://tapasypinchosvictoria.com/
Da mesma forma, outro país que me encanta é o Uruguai. O estilo “low profile” de seu povo, diferente dos “hermanos” do outro lado do Río de la Plata, uma das melhores carnes do mundo, a segurança e a estabilidade de sua economia e política fazem do nosso vizinho um bom candidato para uma vida tranquila, caso as coisas degringolem por aqui. Além do futebol e dos itens citados anteriormente, o país tem outra coisa boa que eu gosto muito. Isenção fiscal para estrangeiros, quer dizer...os vinhos!
Como eu sempre digo, os pontos se conectam em nossas vidas. Eis que aqui na “firma” estávamos conversando sobre os planos estratégicos para esse ano e um dos tópicos abordados foi que gostaríamos de adicionar algumas opções de rótulos uruguaios para nosso portfólio. Curioso que sou, comecei estudar mais sobre os vinhos de lá. De repente me deparo com a informação de que a vitivinicultura de lá foi fortemente influenciada pela imigração basca. Bingo! Tema para nosso querido blog.
Conrad Punta del Este Resort & Casino - Fonte: Marcelo Campi, CC BY-SA 3.0, via Wikimedia Commons
Nessa semana vamos explorar como os imigrantes trouxeram uma uva quase esquecida e desprezada na Europa para o Uruguai e por lá, adaptando-a e domando seus taninos incrivelmente potentes, a transformaram em sua uva emblemática e um ícone para os apreciadores de vinhos de todo o mundo.
EUSKAL HERRIA
O País Basco, também conhecido como Euskal Herria na língua do seu povo, não é (pelo menos ainda) um país propriamente dito. Na verdade, é uma região histórico-cultural, situada no extremo nordeste da Espanha e no sudoeste da França, sendo cortada pela cadeia montanhosa dos Pirenéus e banhada pelo Golfo da Biscaia. As principais cidades bascas incluem Bilbao, San Sebastián e Vitoria-Gasteiz. Seus habitantes, apesar de serem cidadãos espanhóis, em sua maioria, e franceses compartilham idioma e cultura únicos.
San Sebastián - Fonte: Mikelo - Domínio Público.
A população basca fala, além do espanhol e francês, uma língua própria chamada euskara, um idioma isolado, que não está relacionado com nenhuma outra língua conhecida. Os bascos têm também uma cultura distinta que inclui danças, músicas e esportes tradicionais. A pelota vasca é um dos esportes mais populares no País Basco. É uma espécie de squash jogado com uma bola, cestas ou paredes e várias variantes de raquetes, muitas vezes só com as mãos, dependendo da modalidade.
Museu Guggenheim em Bilbao. - Fonte: Naotake Murayama from San Francisco, CA, USA, CC BY 2.0, via Wikimedia Commons
Lar do Museu Guggenheim, do elegante balneário de Biarritz e de alguns melhores ciclistas do mundo, o País Basco também é mundialmente famoso por sua culinária. Pintxos (pequenas porções de comida servidas em palitos), bacalhau, chouriço basco (chistorra), queijo Idiazábal e sidra são apenas alguns exemplos dos elementos fundamentais da gastronomia basca. A região abriga diversos chefs de classe mundial e alguns dos melhores restaurantes do mundo. Mas nem tudo são flores...
UM PASSADO TENEBROSO
O País Basco ficou mundialmente famoso, principalmente nas décadas passadas, pelo seu movimento separatista, iconizado na figura do ETA. Fundada por membros dissidentes do Partido Nacionalista Basco, durante a ditadura franquista a Euskadi Ta Askatasuna (Pátria Basca e Liberdade em basco), foi uma organização nacionalista, fundada em 1959 como um grupo de promoção da cultura basca, que evoluiu para a violência armada e o terrorismo.
Membros do ETA atirando. Fonte: un usuario de Indymedia Barcelona., CC BY-SA 2.0 , via Wikimedia Commons
No final da década de 1960 se tornou uma organização paramilitar separatista, lutando pela independência da região histórica do País Basco. É classificada como uma organização terrorista pelos governos da Espanha, França, Reino Unido, Estados Unidos e pela União Europeia. Desde 1968 o ETA foi responsabilizado pelas mortes de 829 pessoas e por ferimentos causados a milhares de outras, além de dezenas de sequestros. Estima-se que mais de 400 membros do ETA estejam em prisões da Espanha, França e outros países.
Mural republicano em Belfast em apoio ao nacionalismo Basco. - Fonte: Ardfern, CC BY-SA 3.0, via Wikimedia Commons
No início da década de 2010 o grupo, enfraquecido, começo a se dissolver. Primeiro foi anunciado o fim das ações militares e um cessar-fogo permanente. Em 2017 veio o anúncio do desarmamento total e a entrega da geolocalização de oito depósitos de armas secretos situados nos Pirenéus Atlânticos, na França. Em 20 de abril de 2018 o grupo pediu perdão às vítimas e em 2 de maio de 2018, foi divulgado uma carta onde foi anunciado o fim do grupo separatista encerrando assim uma das facetas mais sombrias do País Basco.
A GRANDE MIGRAÇÃO
Há quase dois séculos atrás, por volta do ano de 1860, a migração dos europeus para as américas atingiu seu ápice. A expansão da industrialização e modernização econômica na Europa levou à imigração em massa de trabalhadores para os países do Novo Mundo, onde terras eram abundantes e recursos produtivos escassos. A internacionalização do mercado resultou em uma maior competição dos produtos aqui das américas, como cereais, grãos e carnes, a preços muito mais baixos dos que os produzidos pela agricultura europeia.
Manifesto Emigrazione San Paolo Brasile. - Fonte: Domínio Público.
Além disso, o século XIX testemunhou um crescimento populacional significativo na Europa, acompanhado pela queda da mortalidade, pressionando ainda mais o setor agrícola e dificultando o acesso à terra para os camponeses, resultando em fome generalizada. Dezenas de milhões de pessoas, assim como parte dos meus antepassados, saíram da Europa e desembarcaram em países como os Estados Unidos, Brasil, Argentina, Canadá e Uruguai.
Uruguaios festejando o bicentenário do país. De acordo com um estudo genético, o Uruguai é um dos países das Américas onde o povo tem maior proporção de ancestralidade europeia. - Fonte: Matilde Campodonico, CC BY-SA 2.0 , via Wikimedia Commons.
A chegada desses imigrantes, muitos dos quais tinham experiência na viticultura e na produção de vinhos em seus países de origem, fez com que o Uruguai visse um grande influxo de conhecimentos e habilidades nesse campo. Além disso, as condições climáticas e geográficas favoráveis do país, semelhantes às de muitas regiões vinícolas europeias, proporcionaram um ambiente propício para o cultivo de uvas de qualidade. Esse fenômeno foi muito parecido com o que ocorreu aqui no Sul do Brasil com os imigrantes italianos e alemães.
DOMANDO A FERA
Um pequeno grupo saiu de uma pequena região do País Basco francês, chamada Madiran, com destino ao Uruguai. Consigo trouxeram mudas da casta de uva local: a Tannat. Por lá essa variedade dá origem a vinhos extremamente tânicos e difíceis de beber, mas que combinava bem com a comida local. Por ser uma região fria e montanhosa, os pratos tendem a ser gordurosos e pesados o que harmonizava bem com a adstringência da uva.
Vinhedo em Madiran, França. - Fonte: www.brumont.fr
Os vinhos Tannat de Madiran, não eram e nem são atualmente, um grande sucesso comercial. Como mencionei anteriormente, vinhos muito tânicos, apesar de fazerem muito bem para o coração, devido à sua grande concentração de polifenóis, não agradam o paladar do consumidor médio, que procura vinhos mais redondos e frutados, porém quando os imigrantes começaram a plantar essa uva no Uruguai ela se transformou.
O local onde a produção de vinhos no Uruguai se concentrou foi, principalmente, na região de Canelones, que é ainda hoje a maior e mais importante região vinícola do país. Localizada ao sul da capital Montevidéu, seus vinhedos estão plantados entre os paralelos 30° e 35°, latitude sul. Mesma faixa de plantio de Argentina, Chile, África do Sul e Austrália, propícia para produção de bons vinhos.
Vinhedo em Canelones, Uruguai. Fonte: https://dicasdouruguai.com.br/dicas/canelones-no-uruguai/
Em termos de clima, Canelones possui um clima temperado, influenciado pela proximidade com o Oceano Atlântico, que proporciona verões quentes e úmidos e invernos moderadamente frios. Essas condições climáticas moderadas são ideais para o amadurecimento lento e completo das uvas, resultando em vinhos com boa concentração de sabores e aromas. Além disso, a região de Canelones possui solos e topografia diversos que contribuem para a diversidade de microclimas e exposições ao sol, permitindo aos viticultores escolher os locais mais adequados para o cultivo de uvas de alta qualidade.
Nessa sua nova casa a Tannat dá origem a vinhos que, apesar de ainda serem bem tânicos, são mais redondos e frutados do que seus parentes franceses. Esse processo, no entanto, não ocorreu do dia para noite. Foram precisas décadas e gerações de dedicação de muitas famílias de imigrantes para que essa revolução tomasse forma. Após muitos anos com uma produção voltada para a quantidade em detrimento da qualidade relegaram o vinho uruguaio apenas para o mercado doméstico.
Uva Tannat pronta para a colheita. Fonte: https://www.vinosdeluruguay.com/
Foi somente nos últimos anos que os vinhos Tannat do Uruguai realmente se destacaram internacionalmente, passando por uma transformação significativa em termos de qualidade e reconhecimento. Conhecidos também como ótimos cavaleiros, com a adoção de técnicas modernas de vinificação, investimentos em pesquisa e desenvolvimento, além do compromisso com padrões de qualidade elevados, os uruguaios domaram a agressividade da uva Tannat e conseguiram elevar a qualidade e a reputação de seus vinhos.
Hoje, o Tannat é considerado a uva emblemática do Uruguai. Seus vinhos conquistaram apreciadores ao redor do mundo e a ajudam a levar o nome da pequena nação sul-americana a todos os lugares do planeta. Além da Tannat também são produzidos excelentes exemplares de com uvas mais conhecidas como o Cabernet Sauvignon, Sauvignon Blanc, Merlot, Chardonnay e mais, recentemente o Pinot Noir.
Famoso chef Francis Mallmann degustando um vinho uruguaio. - Fonte: https://bodegagarzon.com/
Se você ainda não provou um bom vinho uruguaio ou a culinária Basca, sugiro que de esse presente ao seu paladar. Se possível for, ao mesmo tempo!
Abaixo deixo alguns links na Amazon para excelentes vinhos uruguaios:
Desejo uma ótima semana a você e toda sua família! Saúde!
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