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O RENASCIMENTO DAS VIDEIRAS.

 

Um novo ano chegou e com ele a renovação de nossos sonhos e esperanças. Costumamos criar resoluções na virada, as quais nem sempre cumprimos, mas o que importa é a sensação de novas oportunidades que esse recomeço nos proporciona. Afinal a vida é feita de ciclos que se iniciam, terminam e recomeçam.

No universo dos vinhos, apesar das colheitas não coincidirem com a nossa virada de ano, a cada safra os produtores precisam reiniciar todo seu trabalho de cuidar das videiras, proteger seus frutos e com eles fazerem bons vinhos. A vinha é uma sobrevivente e agora em 2024, podemos refletir sobre a resiliência dessa incrível planta diante de tantas das adversidades e buscar inspiração para enfrentar nossos próprios desafios com determinação renovada.

Normalmente, uma videira para produzir um bom vinho, precisa “sofrer”. Quanto mais pobre for o solo, mais ela vai enterrar suas raízes buscando nutrientes melhores para suas uvas. Quando a chuva cessa, ela hiberna para se preservar para a próxima estação. Muito calor de dia e bastante frio a noite farão com que seus frutos fiquem perfeitos. O clima é um adversário sagaz das vinhas, porém seu maior inimigo é outro. Como em diversas culturas agrícolas as pragas representam as maiores ameaças a qualquer produção.


Fonte: Vinhedo no pobre solo da Rioja - Caroline Kraus Travel via Google Imagens.

No primeiro post deste ano vamos descobrir como a era dos descobrimentos e levou a filoxera, um pequeno inseto endêmico da América do Norte à dizimar as videiras Europeias no século XIX. Mais do que isso e acontecimento teve um impacto catastrófico na indústria vinícola e forçou mudanças significativas nas práticas de cultivo de uvas e até hoje acho ameaça a produção dos nossos amados vinhos.

A PONTE PARA EUROPA.

Durante a Era dos Descobrimentos nos séculos XV e XVI, houve um intenso intercâmbio global de pessoas, ideias, culturas, e produtos entre o Velho Mundo (Europa, África e Ásia) e o Novo Mundo (Américas e posteriormente Oceania). Novas tecnologias de navegação, mapas mais precisos, e métodos aprimorados de produção foram algumas das inovações resultantes desse período.


Fonte: Uma réplica da Caravela Vera Cruz por Lopo Pizarro via Wikipedia.

Mais do que isso, as descobertas e a abertura de rotas comerciais tiveram profundas repercussões econômicas, levando ao comércio global, competição por recursos e o estabelecimento de impérios coloniais. Nesse tempo, a descoberta de novas terras trouxe inúmeras oportunidades, bem como enormes desafios. Surgiu a necessidade de adaptação a ambientes desconhecidos, enfrentamento de novas doenças e a demanda para se desenvolverem novas estratégias, inovações e mudanças nas práticas tradicionais. 

A história da produção vitivinícola anda lado a lado com a incrível jornada da espécie humana, como já abordei nesse antigo artigo (A História dos Vinhos). Os colonizadores por onde passaram levaram seus costumes e seus produtos e com eles o vinho chegou aqui nas Américas. Entretanto, os europeus não só traziam coisas. Também as levavam de volta com eles (na maioria dos casos mais do que deviam). 

Fonte: O Primeiro Thanksgiving de jean Leon Gerome Ferris -Domínio Público.

Algumas eram boas como o ouro, o açúcar, o pau-brasil, as especiarias, o tomate, a batata, o milho dentre outros, mas algumas coisas cobraram um preço alto na Europa. O tabaco e sífilis mataram e matam muitos europeus e ambos têm origem aqui nas Américas, porém a personagem da nossa newsletter é algo menos mortífera. Pelo menos para os humanos, porque para as vinhas europeias foi apocalíptica.

BICHINHO SEM VERGONHA.

Durante esse os anos de intenso comércio entre as Américas, um inseto foi inadvertidamente transportado para a Europa. Esse bichinho minúsculo é um hemíptero da família Phylloxeridae, endêmico da América do Norte. Na linguagem popular é um tipo de pulgão que nas vive em simbiose com as vinhas americanas e não as destrói. 

No entanto, as vinhas europeias não tinham proteção contra esse inseto, que chegou lá por volta da década de 1860. As raízes das vinhas na Europa eram totalmente vulneráveis aos ataques da filoxera, levando a uma devastação gigantesca nos vinhedos que eram uma parte essencial da economia e da cultura europeias. Mas, antes de seguir na história é preciso adicionar um pouco de contexto.

Fonte: Ciclo de vida da Filoxera (Meyers, 1888) - Dominio Público.

Nem todas as videiras são iguais. Existem cerca de 79 espécies de videiras que dão origens a milhares de variedades de uvas. Dentre esse grupo de dezenas de espécies, duas são mais comuns:

A Vitis Labrusca é uma videira de origem americana e produz uvas excelentes para o consumo quando frescas e para a produção de sucos, pois tem um teor de açúcar equilibrado, pouco amargor e casca fina, mas não é indicada para a confecção de vinhos, pois não consegue ter uma fermentação correta, proporcionando aromas e sabores desagradáveis ao produto final. Esse tipo de uva é popularmente chamado de uva americana e tem, entre outras variedades, as uvas Bordô, Isabel, Red Globe e Thompson.

Já a Vitis Vinifera, dá origem às uvas chamadas de uvas europeias e essas são mais indicadas para a produção de vinhos de boa qualidade, pois, por conta de suas características, tais como casca grossa, alto teor de açúcar e grande quantidade de taninos, conseguem criar vinhos com alto teor alcoólico, aromas complexos, agradáveis e com sabor equilibrado. Algumas de suas variedades mais conhecidas são a Cabernet Sauvignon, Merlot, Carmenere, Pinot Noir, Malbec e Chardonnay.

Fonte: Diferentes tipos de uvas. Cornell University via Google Imagens.

Pois bem, voltando à nossa história e resumindo o adendo anterior, a filoxera convive bem com a Vitis Labrusca, mas destrói a Vitis Vinifera...

Ainda hoje não existe um tratamento químico eficaz e barato para eliminar essa praga. Imagine em meados do século XIX quando a química não era tão avançada como atualmente.

Fonte: Elementos da Comissão de Saúde obrigam a arrancar as vinhas doentes. Imagem de Roger Viollet Via National Geographic.

Outro ponto importante é que naquele tempo o vinho além de ser a principal bebida alcoólica da Europa, ele também era considerado tanto um alimento quanto era usado como remédio para muitas doenças, sendo uma indústria chave em muitas áreas do continente Europeu. O impacto econômico da filoxera foi devastador para as regiões vinícolas da Europa. os vinhedos chegaram à beira da extinção. Foi nessa época, inclusive, que sem o vinho o consumo de Whisky se popularizou.

RENOVANDO AS ESPERANÇAS.

Diversas pessoas desempenharam papéis cruciais na resolução do problema da filoxera mas dois homens se destacaram. Jules-Émile Planchon. um botânico e viticultor francês foi o primeiro a identificar a filoxera como a causa da devastação das vinhas na França. Em 1868, ele fez a conexão entre os danos nas raízes das videiras e a presença do inseto. Sua descoberta foi fundamental para compreender a natureza da praga.

Fonte: Ninfas da filoxera se alimentando das raízes por Joachim Schmid - Via Wikimedia.

Descoberto o inimigo das vinhas, o próximo passo foi dado por um brilhante entomologista norte-americano, Charles Valentine Riley, que descobriu a solão. Ele desempenhou um papel fundamental ao sugerir a utilização das raízes de videiras americanas que eram resistentes a filoxera como porta-enxertos para os caules da vinhas europeias. Essa abordagem, conhecida como enxertia, tornou-se a solução mais eficaz para lidar com a filoxera.

Fonte: Videira enxertada por General Fruit Growing via Google Imagens.

Por salvar a indústria vinícola francesa Charles Riley, foi condecorado com a Grande Medalha de Ouro francesa e foi nomeado cavaleiro da Legião de Honra em 1884. Sua solução de enxertia foi tão eficaz e duradoura para proteger as vinhas contra a filoxera que ela é utilizada até hoje. O advento dessa nova técnica permitiu com que os vinhedos ressurgissem por toda Europa, e bem, não só no Velho Mundo...

TUDO QUE VAI VOLTA.

Já no início e meados do século XX, os vinhedos por quase todo o globo tinham sido plantados com variedades de uvas europeias, uma vez que, como falamos anteriormente, tais variedades são mais indicadas para produzirem vinhos de boa qualidade. Aquela praga que tinha saído da América do Norte e infestado a Europa, voltou para o novo mundo e passou a dizimar as terras plantadas com pés francos (nome dado as videiras que não foram enxertadas) de vinhas.

Fonte: Vinícola Henschke na Austrália que ainda possuí alguns pés francos. www.henschke.com.au

Algumas regiões conseguiram se manter livres da praga. Seja devido a fatores geográficos, por serem isoladas ou terem solos inadequados, técnicas agrícolas específicas ou intervenção humana atempada. Foram poucas, mas por exemplo, na Austrália, a grande distância do continente, o tamanho do país e contando com o grande Outback (o sertão, não a rede de restaurantes srsrrsrs) no meio, a filoxera demorou um pouco para atingir os vinhedos do sul. Mas atingiu. 

Na África do Sul, por quesitos similares aos australianos ela também demorou a chegar, mas eventualmente chegou. No mais, da Manchúria à Turquia, da Tunísia à Suíça, passando por Portugal ao Brasil todo o globo foi infestado pela praga. A solução adotada foi a mesma da Europa...Enxertia.

Fonte: Google Imagens.

Por estar presente em todos os continentes a filoxera se tornou um dos exemplos mais marcantes do efeito humano sobre a dispersão das espécies, já que, em poucas décadas, esta espécie evoluiu de um habitat localizado para uma distribuição global, com uma rapidez que, ainda hoje, não deixa de surpreender. 

Tão impressionante quanto a expansão meteórica dessa praga é a capacidade da civilização de se adaptar e superar desafios. Que a resiliência das vinhas e inventividade das pessoas que ajudaram a resolver o problema lhe sirvam de inspiração para superar qualquer adversidade que surgir para ti durante esse ano.

E que na hora de celebrar as conquistas possamos juntos brindar com uma maravilhosa taça de vinho! 

Abaixo deixo alguns links na Amazon para grandes presentes das videiras (vinhos) para nós seres humanos:


Saúde!


SUGESTÃO DA SEMANA.

Um dos últimos países a ser afetado pela praga foi o Chile. Como a filoxera é endêmica da América do Norte, ela demorou muito para chegar ao país aqui da América do Sul. O Deserto do Atacama no norte do país, o Oceano Pacífico à oeste, os Andres ao oeste e a patagônia no sul, serviram como barreira. 

No vale de Cachapoal, de onde veem os vinhos da Valle Secreto, os vinhedos já foram substituídos por videiras enxertadas, entretanto foi um dos últimos locais da terra onde essa técnica precisou ser utilizada.



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