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AS VINHAS DA IRA.

Disclaimer: Escrevi esse texto antes dos conflitos mais recentes na região.



    Quando pensamos no Oriente Médio e na região do Levante, infelizmente para muitos de nós, o que salta à nossa mente de imediato são as imagens dos muitos anos de conflitos armados entre os povos da região.


    Se eu te falar, entretanto, que lá são produzidos alguns dos melhores vinhos do mundo, talvez você não acredite em mim, mas hoje nesse post, ao contrário do que o título sugere, vou focar na parte boa da vida e lhe mostrar algumas lindas regiões e que, também, produzem grandes vinhos.


O SHIRAZ PERSA.


    Durante um longo período na antiguidade a cidade de Shiraz, no atual Irã, foi a capital do poderoso Império Persa e até 1979, quando o Irão se tornou uma república islâmica, era conhecida como a cidade dos poetas, da literatura, das flores e do Vinho.


Tumba do poeta Saadi em Shiraz no Irã.


    A cidade fica localizada no sul do Irã em uma planície verde a 1500m acima do nível o mar e aos pés da cordilheira de Zagros. Com um clima semiárido, muito quente no verão e congelante no inverno, tem as características ideais para o cultivo de uvas viníferas. No século IX, os vinhos feitos em Shiraz ganharam tamanha fama que eram considerados os melhores do mundo.


Jardim de Eram na cidade de Shiraz.


    A ciência moderna, não conseguiu provar a ligação da uva Syrah, cultivada na França e depois chamada de Shiraz pelos australianos por conta de seu sotaque, mas inúmeras lendas e teorias afirmam que os persas levaram suas uvas até suas colônias durante as guerras com os gregos e depois com os romanos chegaram até a região do Rhône onde fez sua morada.


    Infelizmente com a ascensão do governo islâmico a produção de vinhos foi proibida na cidade e a tradição se perdeu, entretanto ainda hoje é possível encontrar, apesar de altamente não recomendável, um vinho feito de forma artesanal e clandestina na cidade.


O VALE DO BEKAA.


Antigo templo ao deus do vinho, Baco, em Baalbek no Vale do Bekaa.


    A cultura vitivinícola é muito antiga no Líbano...muito mesmo... Estudos encontram vestígios da produção de vinhos na região do Vale do Bekaa de mais de 7000 anos, sendo que os Fenícios, ancestrais dos libaneses, distribuíam seus vinhos por todo o mediterrâneo. O deus do romano do vinho, Baco, passou a ser venerado em antigos templos fenícios dedicados ao seu Deus da fertilidade e posteriormente os vinhos da região foram mencionados diversas vezes na bíblia.


Vinhedo no inverno libanês.


    Sob a influência do Mediterrâneo a noroeste e uma cordilheira de montanhas a sudeste o Vale do Bekaa está localizado a cerca de 1000 metros de altitude e com um solo calcáreo com muito cascalho e pedras que são ideais para a produção de uvas alta qualidade. Tudo isso com um plus a mais. Por estar em uma latitude bem inferior aos principais países produtores da Europa, recebe maior exposição à luz solar, maturando melhor as uvas.


    Com um terroir excepcional e muita tradição, não foi difícil para os franceses, que assumiram um mandato sobre o Líbano após a Primeira Guerra Mundial, e possuíam gigantesco know-how das técnicas modernas de enologia, passarem a fazer grandes vinhos na região e seus vinhos enorme destaque internacional.


    Mas como nem tudo são flores, a região que é fértil, bem desenvolvida e por ser muito próxima a capital Beirute, sofreu bastante durante a Guerra Civil Libanesa (1975 -1990) e os conflitos posteriores com Israel, sendo inclusive alvo da Operação Vinhas da Ira (título da newsletter) em 1996 onde os israelitas bombardearam severamente posições do Hezbollah no vale. Felizmente, a situação hoje em dia é muito mais tranquila e a indústria vinícola voltou a produzir grandes vinhos.


Vista aérea do vale com o Château Kefraya em destaque.


    Um ponto em comum com nosso país, é que a comunidade Libanesa aqui no Brasil é enorme e por conta disso existe no Vale do Bekaa uma, igualmente grande, população de brasileiros e descentes sendo talvez esse um dos motivos que tornam os seus maravilhosos vinhos relativamente fáceis de serem encontrados por aqui.


OS VINHOS DE ISRAEL.


    Localizado onde o Crescente Fértil, região responsável pela sedentarização dos seres humanos, se encontra com o Mar Mediterrâneo, o território onde hoje Israel está localizado, produz vinhos há mais de 5000 anos e eram distribuídos para todos os impérios do mundo antigo.


Jerusalém, a cidade sagrada para três religiões.


    A história moderna dos vinhos de Israel, começa com Barão Edmond James de Rothschild, um banqueiro francês, que por "coincidência" era dono de uma das melhores vinícolas francesas o Château Lafite-Rothschild e levou as técnicas e variedades de uvas francesas para a região da Palestina em 1924.


    O Estado de Israel é uma das nações mais avançadas tecnologicamente do mundo e tais tecnologias, também são aplicadas à produção de vinhos em um terroir de extrema qualidade, sendo seus melhores exemplares encontrados na região da Galileia, próximo as Colinas de Golan, mas a enorme variedade de microclimas dentro desse pequeno território, faz com que diversas outras regiões sejam propensas a vitivinicultura.


Muita tecnologia embarcada, para se produzir no meio do deserto em Israel.


    Infelizmente, a instabilidade política da região, afeta também a produção de seus vinhos. Com uma parte relevante da produção de vinhos de Israel se dando em territórios ocupados, muitos países não reconhecem os vinhos como feitos em Israel, fazendo assim com que estes não participem dos acordos de livre comércio estabelecidos com a União Europeia e outros países, dificultando assim sua exportação e distribuição.


Vinícola Golan Heights.


    Deixando os problemas políticos de lado, Israel conta com mais de 300 vinícolas, sendo operadas desde pequenos garagistas até grandes produtores industriais, sendo boa parte de sua produção exportada a fim de atender a comunidade judaica espalhada pelo mundo, uma vez que muitos vinhos são produzidos sob os preceitos Kosher. Nos últimos 20 anos, entretanto, a qualidade de seus vinhos alcançou um nível elevadíssimo e muitos rótulos conquistaram grandes prêmios e altas notas, fazendo com a procura, mesmo pelos não judeus, aumentasse muito.


O VINHO MAIS PERIGOSO.


    O conflito na Síria já dura mais de 10 anos e é uma das guerras mais sangrentas e nefastas de nosso tempo, mas em um pequeno pedaço de terra, bem próximo ao Mar Mediterrâneo e ao sopé da Cordilheira Costal Síria a barbárie dá lugar a algo infinitamente mais agradável: A produção de vinhos.


    O Domaine de Bargylus, nomeado assim por conta do antigo nome grego da cordilheira, é a única vinícola comercial que restou na Síria e seu vinho Château Bargylus já foi citado pela maravilhosa crítica inglesa Jancis Robinson como um dos melhores vinhos do leste do Mediterrâneo.


Vinhedo na Síria.


    Como no caso dos vinhos libaneses os vinhos sírios também foram levados ao mundo ocidental pelos fenícios e depois ganharam fama entre os gregos e romanos e nos séculos posteriores encantaram os paladares de todo o mundo até a ascensão do islamismo que por suas tradições não consomem álcool. Mas vou focar mais na aventura do que na história.


    Por questões de segurança, os jovens irmãos Saadé, donos da vinícola, estabeleceram seu escritório comercial no Líbano, entretanto fazem questão de que o vinho seja produzido e engarrafado na Síria e para isso, nos últimos anos, precisam mandar várias vezes as uvas de taxi em uma jornada de mais de 200 quilômetros da cidade de Lataquia para Beirute, a fim de prová-las e definirem qual o melhor momento para sua colheita.


Irmãos Saadé.


    Mas esse é só um dos muitos desafios de se produzir um vinho em tempos de guerra.


    Na última década, foram raríssimas as vezes em que os irmãos puderam visitar e os vinhedos e se em um país em paz já existem inúmeros problemas logísticos para não só para escoar a produção, mas como para importar insumos e matéria prima, imaginem em uma nação em guerra. A região é constantemente palco de conflitos, mas por “sorte” até hoje os vinhedos e a vinícola foram poupadas das bombas, mas não dos destrutivos impactos econômicos.


    Contra todos os prognósticos e contando com algumas “táticas de guerrilha” para produzirem e distribuírem seus vinhos, o Domaine de Bargylus conseguiu ganhar fama internacionalmente e seus vinhos figuram nas cartas de restaurantes europeus com estrelas Michelin, além mercados importantes como Dubai, Singapura e Japão.



A vida “teimando” em florescer na primavera síria.


    Os irmãos produzem outro grande vinho no Líbano, o Chateau Marsyas do Vale do Bekaa e talvez esse espírito de lutar contra as adversidades tenha sido herdada do pai, que fez fortuna durante a guerra civil do Líbano, o qual investiu tudo o que tinha na indústria do turismo e mercado imobiliários, contando que dias melhores chegariam e de fato eles sempre chegam.


Abaixo deixo alguns links na Amazon para vinhos produzidos na vinícola Golan Heights que foi fundada em 1983 nas Colinas do Golan, na Galiléia, região montanhosa situada no norte de Israel e conhecida localmente como a “terra do vinho”. Yarden, a marca dos vinhos premium da Golan Heights, produzidos a partir dos melhores vinhedos da vinícola, significa Jordão em hebraico e homenageia o histórico Rio Jordão, retratado nos escritos sagrados judaicos e cristãos e cujo percurso (nasce nas encostas do Monte Hermon, passa pelo Mar da Galileia e deságua no Mar Morto) atravessa a Terra Santa.:


Saúde e paz à todos!


Atualização de 05/11/2023. Escrevi esse texto em maio de 2021. O finalizei à época contando que a paz chegaria a região, mas a maldade humana não tem limites. Mais de dois anos depois estamos testemunhando novamente a guerra e a morte de milhares de inocentes por lá, mas a esperança de tempos onde a paz prevalecerá continua em meu coração.

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