Quando o Carnaval chega para alguns que, como eu, o maior excesso nos últimos carnavais tem sido umas taças a mais de vinho vendo alguma série, esse feriado é apenas uma oportunidade para descansar um pouco antes do ano começar de fato no Brasil. Já para uma gigante parcela da população brasileira e gringos do todo o mundo que visitam o país nessa época, a “festa da carne” é sinônimo de folia, diversão, liberdade e excessos. Durante esses cinco dias, em alguns estados quase um mês, muita gente abusa. Inclusive das drogas.
A visão que se tem sobre certas substâncias muda ao longo dos tempos. O que era sagrado em um dia vira algo problemático no outro e vice e versa. A canabis por exemplo era uma planta de extrema utilidade, virou uma grande vilã e atualmente é a grande esperança para o tratamento de inúmeras doenças crônicas. Nos últimos anos, inclusive, tem surgido no mercado diversos vinhos infundidos com a erva onde os produtores tentam combinar os efeitos do THC e do Canabidiol às propriedades do fermentado de uvas.
Para mim por exemplo, o vinho é uma bebida dotada de inúmeros benefícios, tanto para o corpo quanto para o espírito, porém para quem não consome álcool o vinho é tão prejudicial quanto qualquer outra bebida ou droga pesada. Não estou aqui para fazer juízo de valor sobre o consumo de qualquer coisa. Como diz o grande Rapper Mano Brown: “...quem sou eu para falar de quem cheira ou quem fuma...”
Toda essa introdução, pois me deparei, recentemente, com uma história curiosa sobre um vinho produzido com cocaína, cujo era apreciado por diversas personalidades do século XIX, inclusive um Papa e com um desfecho surpreendente. Para aqueles que ao invés dos blocos, pipocas e camarotes, preferem um pouco de sossego e descanso, deixo essa inusitada história para o post dessa semana.
FOLHA SAGRADA, PÓ MALIGNO.
Atualmente o consumo de cocaína é visto como um grande problema de saúde pública e seu tráfico, o qual movimenta centenas de bilhões de dólares no mundo é um dos maiores responsáveis pela violência e mortes em muitos países, sendo o Brasil uma das grandes vítimas. Mesmo o seu uso recreacional, que outrora era relegado as camadas sociais mais abastadas e artistas, hoje está espalhado por todo os espectros da sociedade.
Antes da substância extraída das folhas de coca ser considera uma droga pesada utilizada em banheiros de festas, bares, consultórios e escritórios de investidores da bolsa de valores e o entendimento dos terríveis danos à saúde de sua utilização, seu consumo teve uma conotação completamente diferente no século XIX. Naquela época, era socialmente aceitável e de certa forma até comum, usar um pouco de cocaína para se ganhar um gás extra para o dia. O estimulante concebido a partir das folhas de coca, antes da regulamentação, era encontrado nas receitas de tônicos, remédios, inclusive infantis e até em refrigerantes.
O consumo de folhas de coca tem origens ancestrais na região dos Andes, onde é cultivada desde pelo menos 3000 a.C. pelas culturas pré-colombianas da região, como os Incas, que a consideravam uma planta sagrada e a utilizavam em cerimônias religiosas, rituais de cura, além de sua utilização como estimulante e para combater o mal de altitude. A mastigação das folhas de coca também era comum entre as populações andinas como uma forma de combater a fadiga e a fome durante longas jornadas de trabalho nas plantações ou nas minas de prata.
Com a colonização europeia na América do Sul os colonizadores, ao observarem o consumo das folhas pelos nativos, passaram a consumir a coca tanto para uso medicinais quanto para uso recreativo e levaram o hábito consigo para a Europa.
VINHO TINTO COM COCA PERUANA.
Angelo Mariani foi um químico francês nascido em 1838 na ilha da Córsega. Seu pai era botânico da vila e abriu uma farmácia em 1847 na cidade vizinha, onde o jovem Angelo foi trabalhar. No início de sua vida adulta mudou-se para Paris para cursar a faculdade de farmácia onde teve o primeiro contato com tônicos, principalmente os produzidos à base de quinina.
Por volta do ano de 1860 foi trabalhar em uma farmácia nos arredores de Paris e por ser fascinado pelos estudos de Paolo Mantegazza sobre os efeitos da planta da coca, bem como os métodos de pioneiros Albert Niemann sobre como isolar a forma cristalina da cocaína, Angelo Mariani desenvolve com o doutor Pierre Fauvel, um dos primeiros médicos a usar a cocaína por suas propriedades anestésicas, um “vinho de coca”.
Segundo a história, em 1863, uma cantora da Ópera, rouca, foi à farmácia de Angelo a pedido de seu laringologista, o Dr. Fauvel, solicitando um vinho de coca. O Sr. Mariani então apanhou, como amostra, algumas gotas de sua preparação mais recente, uma infusão de três variedades de folhas de coca em vinho da região Bordeaux. A cantora, após provar a amostra, achou o “remédio” muito eficiente e encomendou 12 garrafas do novo tônico. Percebendo o potencial de sua invenção, Angelo correu para patenteá-la e a batizou com o nome de Vinho Tônico Mariani Com Coca Peruana, que logo seria conhecido sob o nome comercial de Vin Mariani.
O sucesso foi estrondoso e o tônico ganhou fama por toda Europa. Era receitado para o tratamento de gripe, doenças nervosas, anemia e impotência. As vendas foram tão grandes que aos 41 anos de idade Angelo Mariani pode comprar sua própria farmácia que, pouco tempo depois, já estava produzindo suas bebidas à base de coca em escala industrial. Com a receita aprimorada, onde as folhas de coca eram maceradas em conhaque e depois adicionadas a vinho tinto e açúcar para amenizarem o gosto da coca, seus produtos chegaram a Londres e Nova York, lhe rendendo uma enorme fortuna.
A PARADINHA ANIMOU ATÉ O PAPA.
Muitas pessoas importantes do século XIX se tornaram entusiastas do consumo de vinho de coca tanto como uso medicinal quanto para uso recreativo. Famosos como o compositor Charles Gounod, o autor Júlio Verne e o presidente dos EUA, Ulysses S. Grant, o inventor Thomas Edison foram conhecidos por serem consumidores regulares da bebida. Talvez o maior apreciador da “bebidinha” tenha sido o Papa Leão XIII.
O Papa Leão XIII era tão fã da criação de Mariani que decidiu ir a público endossar o seu consumo e até inventou um prêmio, com uma medalha de ouro, em reconhecimento aos benefícios para a saúde do Vin Mariani. Aparentemente vossa santidade não seguiu o conselho de se apreciar a bebida com moderação e andou dando uma abusada mesmo depois do carnaval.
Apesar de parecer meio doidão, o Papa Leão XIII, nascido como Vincenzo Pecci, foi um jovem estudante brilhante, ganhando diversos prêmios acadêmicos. Ainda bem jovem foi um administrador público exitoso e ordenado bispo muito cedo, galgando posições muito rápido dentro da comunidade eclesiástica. Foi ordenado papa aos 68 anos de idade. Seu papado levou a Igreja Católica de volta à corrente principal da vida europeia. Considerado um grande diplomata, ele conseguiu melhorar as relações com o Império Russo, Prússia, Império Alemão, França, Grã-Bretanha e Irlanda e outros países.
Leão XIII é creditado com grandes esforços nas áreas de análise científica e histórica e trabalhou para incentivar o entendimento entre a Igreja e o mundo moderno. Fã de Virgílio e Dante, Leão XIII era um semi-vegetariano. Mesmo gostando demais do Vin Mariani, foi o segundo papa mais longevo da história, falecendo com 93 anos e atribuiu sua longevidade à uma dieta com consumo limitado de carne e abundante em ovos, leite e vegetais. Seiiii...
DO PÓ VIEMOS E AO PÓ VOLTAREMOS.
Esse “boom” da cocaína do século XIX, alçou os vinhos de coca para um meteórico sucesso, porém a folia não duraria para sempre. A opinião pública começou a se voltar contra a cocaína e seus efeitos. Em 1910, os Estados Unidos aprovaram a Lei de Alimentos e Drogas Pura, que proibia a venda de produtos que contivessem cocaína ou outros narcóticos. Esse incremento nas leis sobre as drogas, bem como sua repressão, fez com que o consumo de cocaína quase que se extinguisse até o ressurgimento para uso “recreativo” nos anos 70.
Ângelo Mariani morreu em 1914, e a produção da Vin Mariani foi interrompida na década de 1920, pois o Sr. Mariani não deixou os segredos de sua receita para sua família. Apesar da controvérsia em torno do uso da cocaína, a Vin Mariani teve um grande impacto na cultura e história da bebida. A mistura do vinho com cocaína inspirou muitas outras bebidas energéticas e estimulantes, e a ideia de "vinho medicinal" abriu caminho para bebidas como o vermute e o amaro. A Vin Mariani também ajudou a popularizar o uso da cocaína, o que levou ao desenvolvimento de outros medicamentos e anestésicos.
O mais famoso concorrente do Sr. Mariani foi o Pemberton's French Wine Coca. Esta bebida foi criada pelo farmacêutico americano John Pemberton em 1885 e continha vinho e extrato de coca. Na verdade, o tônico de Pemberton era muito similar ao produto do Sr. Mariani. Basicamente a única diferença foi a inclusão da noz africana de cola, responsável por adicionar cafeína a bebida. Em 1886, Pemberton substituiu o vinho por água carbonatada e xarope de açúcar, criando o que hoje conhecemos como Coca-Cola.
Para essa semana eu não poderia, nem deveria, recomendar nenhum vinho relacionado ao tema. Ao invés disso eu deixo alguns links na Amazon para alguns vinhos que gosto bastante:
Desejo a todos um bom carnaval. Saúde, juízo e apreciem com moderação.
PS: Em 2014 um empreendedor chamado (olhem que coincidência) Christophe Mariani, o qual não tem relação com a família do Sr. Mariani, relançou o produto em teve em 2017 uma reunião em Roma com o então presidente da Bolívia, Evo Morales, para discutir a fabricação do vinho de coca naquele país.
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